27.10.10

Num estádio vazio

Esquece. Esquece os livros de papel e os beijos de mão dada. Esquece os filmes onde todos foram felizes para sempre, esquece a porta do cinema, esquece o escondidos nela, o abrigo à prova de água, esquece o barulho da chuva nas pedras, o encontro por acaso mas bom dos corpos, o motor dos carros, a borracha os travões, o disfarce e o abraço, o andamento da cidade. 
Esquece a engrenagem, os sinais e até a luzes. Esquece a frase, a linha, a estrofe inteira, esquece a letra do hino. Esquece o sentido dos ponteiros do relógio, a multidão a bater palmas, o som da bola a bater na rede, esquece-te de dizer é golo quando for, esquece-te de te levantar da cadeira de braços abertos, porque não sei se já te esqueceste mas já não te lembras do que é sentar os olhos no escuro e deixar o corpo a chorar como se não houvesse amanhã. Pode ser no vazio de um  estádio.

29.9.10

Não tinha de ser

Lembro-me de ter dormido com as chuteiras aos pés da cama, por cimas dos cobertores, com a colcha branca de renda feita pela minha mãe puxada para trás para não a sujar. As chuteiras pretas com sola preta de pitões de borracha e duas tiras brancas no peito do pé eram minhas desde o meio-dia, a hora em que as  troquei por uma nota de quinhentos escudos na feira de Espinho. Durante a tarde fui à garagem do meu pai, com cuidado para não riscar o carro, e peguei na lata de tinta preta e num pincel. Sentei-me no chão de cimento, peguei nas chuteiras e pintei as tiras brancas de preto, com cuidado para não riscar de preto a tinta branca da chapa do carro. Tinham tempo para secar, as chuteiras, até porque a estreia no pelado do parque de jogos da Rainha, com a camisola do Serzedo estava marcada para as cinco da tarde de amanhã, um sábado de verão de 1985.
Por esses dias, um goleador brasileiro do Fluminense  chegava ao FC do Porto, e apesar de goleador, tinha o lugar tapado por duas botas de ouro nos pés do Gomes. O brasileiro chamava-se Paulinho Cascavel e acabou recambiado para Guimarães, envolvido no negócio do guarda-redes dos juniores, um puto de bigode chamado Best, que devia ser o melhor do Brasília e do Dallas e pouco mais.
Ao longo da épocas seguintes o Cascavel marcou sempre mais golos do que eu, mas ele tinha a vantagem de jogar na relva, a ponta de lança ,com chuteiras adidas, numa equipa que jogava ao ataque, enquanto que eu variava da esquerda para a direita nos campos pelados de Vila Nova de Gaia com as chuteiras da feira de Espinho, esfoladas no osso do dedo grande e com terra por baixo das meias na sola do pé.
Um dia, era eu mariola dos juvenis, onde fazia com simplicidade a posição 10, e vejo na primeira página da Gazeta dos Desportos o Paulinho Cascavel com a camisola do Sporting. Eu continuava com as listas horizontais, a azul e branco do Serzedo, mas tinha por dentro, no coração as cores da camisola do Paulinho. Está na história do futebol português: ele continuou a marcar mais golos do que eu.(outro da do histórico: alguns miúdos jogavam de buço por causa dele).
No último sábado havia a hipótese de jogar de igual para igual com ele pela primeira vez na vida. Os dois no mesmo relvado, com chuteiras parecidas, embora ele continuasse com a vantagem de jogar mais perto da baliza. Para isso era preciso que o Serzedo vencesse o Canelas e que o Guimarães ganhasse à Académica. Assim foi.
O tão esperado encontro dentro das quatro linhas estava marcado para a tarde do último Sábado., num jogo de veteranos. Ele jogou e marcou um golo. Eu fiquei em casa com a rótula partida. Como no resto da história, vantagem para o Paulinho Cascavel. Foi por pouco que não nos encontramos em campo. Estava escrito que não tinha de ser.

31.8.10

Rugby, 1888

A imprensa de Leeds escrevia naquela página uma notícia de desporto. A altura do ano, o mês de Novembro, atira a imaginação para uma tarde de nevoeiro com chuva, estando a meteorologia directamente ligada ao facto de a erva ser escorredia nuns lados e inexistente noutras partes, estando aí em vez dela a terra e a água e por conseguinte a lama.
As notícias davam conta aos locais de Leeds de um jogo de Rugby onde tinha havido um castigo mais grave do que os outros castigos. Um castigo máximo. Uma penalidade! A penalty, na versão corrente do inglês utilizado no texto de origem. 
Isso foi em 1888. Em 1890, o filho milionário de um obviamente milionário produtor de linho, futebolista nas horas vagas, o filho, andava preocupado com as tácticas quase homicidas dos defesas sobre os avançados nas imediações das balizas. William McCrun abeirou-se da federação de futebol irlandesa com a ideia de um tiro nos tais homicidas que cirandavam os postes. Nasceu o penalty no futebol. Morreu a injustiça, nasceram gémeos de género feminino: a polémica e a corrupção. Nasceram heróis e nasceram vilões. Ao fim de 122 anos, o strange old game (o futebol) mantém bocas abertas, espantos, sorrisos e continua a fazer correr lágrimas. A 11 metros da baliza é onde mora o impossível. Como aconteceu no último sábado. A um condenado à morte num clube de futebol só lhe faltava ter de dar a cara e as costas à defesa de um castigo máximo. Era o pior que lhe poderia acontecer.Ou talvez não. O golo morreu nos braços do condenado à morte. O couro ouviu um coração a sair do peito.
PS: o primeiro penalty da história do futebol foi marcado no Molineux, estádio do Wolverhampton.

26.8.10

A história de Genk

A história de uma imagem fala de uma fotografia a cores. O autor da imagem é anónimo, pese embora a memória vasculhada permita dizer que o autor é uma mulher. Muito provavelmente uma mulher solteira, de vinte e poucos anos, seguramente holandesa, loira com igual certeza e alta. Alta e feia, não restem dúvidas quanto a descrição tosca de um rosto  bom para ficar atrás de uma câmara. Não foi por isso que o fizemos, mas acabamos por o fazer. Entre um e outro e outro e outro copo nesta mesa, e outro, pedimos à rapariga da mesa do lado para segurar a máquina fotográfica, apontar, na nossa direcção, sendo que nós éramos três. Pedimos para levantar o indicador da mão direita e pedimos para carregar. Na imagem, por baixo dos sorrisos, havia uma carteira com cento e cinquenta euros, com cartões, com documentos de identidade, enfim, aquilo a que se convencionou designar por uma vida inteira. Num segundo, a carteira sobre a mesa da fotografia,  já não estava sobre a mesa do bar. No mesmo segundo, a desconhecida autora da imagem tinha seguido o caminho do anonimato absoluto. Ficou um português sem identificação em Tegelen, Venlo, Holanda, a  vinte e quatro horas de regressar a Portugal, sendo que no espaço desse dia tinha de dar um salto á Bèlgica por causa de um jogo de futebol. 
Abreviando foi assim: foi seguir do bar para a esquadra da polícia, da esquadra da polícia para o sala do pequeno almoço do hotel, da sala do pequeno almoço do hotel para o carro, e uma vez no carro foi seguir viagem de Tegelen para Roterdão.A distância? Cento e setenta e sete quilómetros. No porto de Roterdão, no porão de um barco ancorado onde funcionava uma loja de artigos de pesca, entre linhas, anzóis, canas, redes, gorros e impermeáveis, havia um sistema antigo de fotos à là minute e havia um secador. Saí de lá com menos nove euros, mas com mais quatro fotografias. O funcionário do consulado português tinha ficado à espera de um português, este, eu. Eu nesse dia fiiquei de repente a saber  que estava mais gordo ou era impressão minha. Saí de Roterdão com um documento verde, onde foi colada uma fotografia anafada de mim, que me permitiria voar desde Dusseldorf até ao Porto. Não sem antes porém... haver estrada e asfalto, do mal o menos, ao longo de cento e noventa e nove quilómetros, terminando a contagem no parque de estacionamento do estádio de futebol do Genk. Os jogadores subiam ao relvado para o aquecimento. Eu mandei embora o frio na barriga com dois cachorros comprados e comidos numa roullote mais limpa do que muitas casas portuguesas, cobertos por uma cebolada da cor de mármore acabado de lavar. As tais roullotes estão aqui no mesmo sítio, de novo horas antes de um Genk - FC Porto, três anos mais tarde. Poderia perder linhas a desenvolver o conceito segundo o qual há coisas que nunca mudam. É preferível não o fazer. Antes, no aeroporto do Porto, neste dia do regresso a Genk o taxista já ia embora quando reparou em qualquer coisa esquecida no banco de trás. Qualquer coisa era uma carteira. A minha. Esta chegou a Genk para contar a história.